Cláudia
Punhais e adagas
ao invés d'unhas e dentes
e uma total falta de hospitalidade
quando surpreendida à porta de casa
:
assim se demonstrava Cláudia
derretendo sob o sintético firmamento.
Teatralmente máscula de queixo
- Cabo Bojador da África da sua face -
conseguiu
por momentos
impedir o acesso
do circo circundante
(burocrata imenso, nesse aspecto)
: deditos d'homens que suam
e enodoam vidro e cristal com dedadas d'ecrã táctil;
e línguas que serpenteiam tontas em vocábulos d'algodão doce;
e fiozinhos de café e tabaco e saliva e licor que flutuam,
e que t'ancoram ao momento;
Cláudia:
Pescoço mártir,
Cabelo que desconhece,
Intérprete de si própria,
Acercam-se de ti, aos milhões...
cobiçam-t'a carne
mas tu sacode-los com um rugido
um só rugido...
Ai, Cláudia,
mas um rugido só não bastaria, não é isto verdade?
Mesmo que em anexo estivessem:
os punhais
e as adagas
e a total falta de hospitalidade
(quando surpreendida)
e a falsa masculinidade do teu queixo
mesmo assim,
insistirão sempre em ler-t'as silhuetas,
q'aparentam escrever-se em braille;
e
insistirão sempre
em roubar por ti um mundo,
sendo tu dona de uma galáxia.
Caramba, Cláudia... mandá-los à merda, talvez?
A tua perna cruzada que termina em sabrina preta,
diante do espelho sabia a ponto final.
mas perante o olhar ébrio que tudo triplica...
Cansam-te as defesas.
Escorregam-t'as saias.
Agarram-te sem t'agarrar, e o próprio sentar conspira contra ti.
Cláudia,
vives num éter de âmbar. Respirar sufoca-te.
Abusaste no batom,
e o excesso mostrou-se desinibido à beira do teu gin tónico.
Esconde-te nas paredes, mesmo q'estas te fujam!
Embalas as tuas mãos num colo que te grita inaudível.
e
cruzas as mãos:
polegar direito entre polegar e indicador esquerdo,
ou
polegar esquerdo entre indicador e polegar direito,
e os restantes...
eles que sigam a deixa,
em carreirinha,
entrelaçados conforme possível,
eternamente selados num vácuo só teu,
e imóveis quanto baste,
ou "quanto permitido"
nos zero Kelvin a que te jogas uma e outra vez,
(três a cinco segundos);
e depois
alternar ad eternum
dentro de um tempo
.estático.
e seria de esperar que
alguma liberdade adviesse mas
estático para ti também, Cláudia.
.movimento morto.
come-te, se chegar a isso
ou mastiga o verniz que estala
ou aquela pequena pelezinha
que cresce sem autorização
na fronteira entre
dedo e unha
unha, punhal
já nem sabes
aliás
aventuraste-te
e pousaste a mão
em cima da mesa
e esta em retorno
diluiu-te as impressões digitais
mas não t'as roubou
ainda respiram
sobre a polpa dos teus dedos
em relevo espiral e ainda
único
mas corromperam-se certas parcelas
e certos traços que vês
não são teus
mas sim do que t'envolve
e do meio
e do método
e do
um tal de "Raúl" cultiva-se especado
a poucos metros da tua mesa
sentes o teu crânio colapsar
sob o peso do seu olhar latino
que te escrutina
recôndita
só na multidão
e o arsenal bélico q'exibes
e que sabes não funcionar
mas que no mínimo difere o inevitável
é mitológico
para Raúl
pois ele não vê
os punhais
as adagas
a total falta de hospitalidade
(quando surpreendida)
ou a falsa masculinidade do teu queixo
ele vê-te, Cláudia, como um todo
e se te vê em particular
vê sinédoque:
se vê pescoço
cabelo
ou intérprete
não vê mártir
abstracção
ou egoísmo
se vê pescoço
cabelo
ou intérprete
vê Cláudia, somente.
uma Cláudia que nem tu
Cláudia
alguma vez verás
uma Cláudia que se revela
Cláudia, somente
a todo aquele que por ti
Cláudia
estiver disposto a morrer
somente.
e se usasses o tempo
.estático.
(cuja oferta suplanta agora a procura)
e explorasses Raúl
aperceber-te-ias que
ele não procura as partes
nem procura a sua soma
mas sim um todo
que te é invisível
e verias um Raúl
que nem o próprio Raúl
alguma vez verá
...mas não
adensaste-te no teu ego
quebraste o próprio tempo .estático.
e deste lugar aos buracos d'verme
que se pintaram nas tuas têmporas
d'onde cospes sensual
longo duo pseudópode urdido a tardígrado
- ursinho d'água imortal esperneando tonto perante o novo espaço -
que se dirige a velocidade zero
ao crânio de Raúl
que não reage
porque não consegue
...e o tardígrado, bem,
o tardígrado consegue ser bicho cruel
principalmente quando em grupo
- o chamado peer-pressure
e um universo de múltiplo tardígrado revestia o longo duo pseudópode
que ostentavas
ainda em aproximação de Raúl
a velocidade zero
...
...
...
Raúl nas mãos dum bando de tardígrados? Não estarás tu a exagerar,
Cláudia?
Que pretendes tu com este aproximar de pseudópode e crânio?
Coíbe-te!
Caramba, Cláudia, coíbe-te!
Não te sentes a alastrar os pseudópodes?
Não te sentes vertiginosa, prestes a sucumbir num terror da tua própria criação?
Vês-te mesmo capaz de magoar Raúl,
que te viu como realmente és,
um és que nem tu te sabes capaz de o ser?
Porque eu digo-te o que estás a fazer, Cláudia:
estás prestes a entrar num processo de fagocitose!
Juro-te!
tenta observar o movimento dos tardígrados!
analisa os padrões q'estes deixam marcados na luz do sintético
firmamento!
repara na turbulência que geram
que tu sabes impossível d'existir num simples prolongar de pseudópode
já não se trata de um simples prolongar de pseudópode!
toma nota da concavidade imensa que escorrega na curvatura, leitosamente,
e q'engloba Raúl numa bolsa d'Actimel
já não se trata só de pseudópode, Cláudia
entras agora num processo de fagocitose!
queres mesmo ir por aí?
estarás tu disposta a consumir Rául por nutrientes?
valerá a pena?
Cláudia,
compreendo o medo
compreendo a ansiedade
compreendo a merda d'olhar com que te definem
compreendo o calor sufocante da luz artificial multicolor
e compreendo o quereres sair dali...
...compreendo tudo isto
e demonstro-me aqui, empático,
para com a tua condição
mas acho
que foste dura
e demasiadamente dura
com Raúl
porque a ansiedade
que sentes
Cláudia
isso cura-se
com terapia
já o fagocitar de um Raúl
isso é algo mais irreversível