Deus cego e surdo

Deus cego e surdo

Ainda com o trago a Viseu
nos recantos da minha boca,
voltava ao escritório catita
de espíritos animados.
Clic-clacs de teclados inundava-me,
uma balbúrdia, como carabinas na guerra.
A luz azul do monitor abraçava-me a cara;
nele uma dança de letras, números e tabelas.

clic-clac   clic-clac   clic-clac
clic-clac   clic-clac   clic-clac
clic-clac   clic-clac   clic-clac

Com o passar dos dias aumentava o caos:
cada tecla agora um disparo de canhão,
E as danças de salão dos números,
agora episódios epilépticos de equações.
Lentamente o som mesclava-se nos meus olhos.
E deixei de escutar, apenas ouvia.

No final da semana não via mais caras.
Os meus colegas apenas vultos,
Pinceladas de aguarelas num fundo turvo.
A minha mulher, também ela desvanecia.
E com as pessoas, os colegas, e a minha mulher,
também o tempo parecia mixórdia de memórias;
e vultos.

No quadragésimo dia perdi a visão.
Não via escuridão, nem via nada,
apenas uma orgia de cores e movimentos.
Impossibilitado de trabalhar, quebrei.
Ajoelhei-me no chão,
debrucei-me na cama,
fechei os meus cansados olhos,
e,
rezei:

   Pai nosso que estais nos céus,
   concede-me olhos, olhos para ver;
   Olhos para ver a beleza do mundo;
   Para trazer sustento para a minha família;
   Para olhar para a minha linda esposa.
   Ámen

Silêncio transbordava do quarto,
interrompido apenas
pelo sexo selvagem
dos vizinhos do lado,
e construção civil na rua.

Finalmente abri as pálpebras,
e não existiam mais vultos,
nem aguarelas,
nem fundo turvo,
nem quarto,
nem cama,
nem mulher.

Pela primeira vez em mais de 14 mil milhões de anos eu vi.
Nós vimos.

E continuamos a ver.

Deodato de Silva

Deodato de Silva

Em partes divisíveis infinitamente nulas de sussurros da imaginação de deus