Lâmpada de rua

Lâmpada de rua

Encontrara por fim algo,
que julgava há muito perdido:
inspiração.

Intoxicado com este reencontro,
caminhei, por velho hábito,
ou mesmo nostalgia,
em direção à minha varanda;
onde bebera gélidas águas em noites quase como aquela,
muito quentes, com o céu apinhado de estrelas;
cada uma minha confidente,
de sonhos, e de ambição.

Ali fiquei, afogado no silêncio da noite,
a ouvir os meus pensamentos reflectidos no oco espaço.
Bebia a minha água, e o tempo pairava, suspenso.
Sentia um ardor no coração
e um sorriso parvo
lutava por independência no meu rosto.
A lâmpada de rua brilhava um sólido dourado.
O universo inclinava-se enquanto eu transbordava.

O centro. Quietude. Tudo.

De repente uma manada rebentou no fundo da rua.
Três cães e um gato.
Parecia algo vindo de um filme.

Olhava incrédulo para a perseguição,
ainda meio parvo,
o meu cérebro a correr atrás da realidade,
como se tivesse acabado de acordar de um longo sonho.
Pousei o copo e observei.

O gato era um borrão na calçada,
com velocidade, fintas e contra-fintas.
Os cães titilados engasgavam-se a respirar,
como bestas em overdose de êxtase.
Latidos perversos coloriam a caçada.
Finalmente circundavam o pobre felino.
Este futilmente tentava se defender destes selvagens.
Por cada golpe que desferia, sofria duas dentadas.
Os latidos ecoavam nos surdos prédios;
cada vez mais altos,
alcançavam loucura.
O maior abocanhou o pescoço do cansado gato,
e,
com um movimento macabro,
estropiou e matou o ser.
Após uns momentos,
largou-o no chão,
agora um trapo sem vida.
Os outros, sedentos,
aproximavam-se para cheirar,
para empurrá-lo com o focinho;
e ladravam ansiosamente,
como se estivessem a dizer:
"Levanta-te, quero mais".
O cadáver, obviamente, não se mexia;
e a matilha exsudava desinteresse.
Como se fosse o cúmulo do ordinário,
vagueavam agora pelas redondezas,
à procura de paredes para mijar.
Com o seu território marcado,
desapareceram no descampado.

A noite ruíra em silêncio.
O outrora gato ficou ali,
imóvel,
iluminado pela intermitente luz do lampião;
sangue pisado agora a decorar a rua.

Dei um golo da minha água e tremi,
pois estava uma noite fria.

João Dias

João Dias

Poeta, sonhador, falhado, gamer