Relato Falhado da Manifestação Contra a Rentrée Política do CHEGA (ou "A Total Inaptidão de um Observador que Não Sente"; ou "Até Onde Me Levará Esta Minha Ingenuidade"; ou "O Sentido de Posse do Pseudo-Intelectual Sobre o Mundo que o Rodeia")

Relato Falhado da Manifestação Contra a Rentrée Política do CHEGA (ou "A Total Inaptidão de um Observador que Não Sente"; ou "Até Onde Me Levará Esta Minha Ingenuidade"; ou "O Sentido de Posse do Pseudo-Intelectual Sobre o Mundo que o Rodeia")

"Este evento decorreu a 26 de Setembro de 2020, em Almancil, muito antes de todo o aparato das presidenciais. A motivação inicial para esta documentação nada teve a ver com o interesse do evento em si, mas sim com a completa falta de rumo que aflige o autor. Para grande infortúnio deste, lia Hunter S. Thompson na altura, e quis lamber-lhe os calcanhares. Comprometeu-se a despachar o texto em uma semana, dizia ele. Publicamo-lo agora, na segunda metade de Janeiro de 2021. Ponderámos correr com ele. Mas há, infelizmente, todo um mecanismo empático em acção, impedindo escolhas puramente racionais. E assim sempre se cavalga a onda das presidenciais. Enfim. Somente nota dos editores. Prossigam."

- equipa Demónimo

O autor já pouco ou nada se identifica com o texto, e sentiu a necessidade de o transmitir...

- equipa Demóniimo


I. Fraquíssima Tentativa de um Contextualizar Político de André Ventura e o seu Partido

   Pouco ou nada sei sobre André Ventura e o seu partido CHEGA. Não tenho nada contra ou a favor. Para além de não ter nenhum cavalo na corrida, também não me sinto parte desta, apesar de ser tão participante como qualquer outro papalvo que exista, desde que nasci. Estou vagamente a par do que é dito - palavras que flutuam por aí à boleia dos 4G's e dos WiFi's, e quem sabe, dos 5G's da vida - mas nunca dei grande importância aos chavões arremessados por ambos os lados, por me parecerem estereotipados até à exaustão. Digam o que disserem, sobre ele ser Demo ou Messias, culpo-me incapaz de o ver, ou até de identificar um intervalo no espectro criado por estes dois extremos que o defina. Para mim, cheira só a político (admito aqui o uso de "político" como adjectivo poético e.g. "Ah, a pele da rapariga morena, esbelta e formosa, que reluzia à luz do sol, emanava uma cor em tons de político..."; será isto bom, será isto mau? Deixo à discrição do leitor).

   Confesso que, no passado, em períodos de especial contradição, afirmei ser apoiante, ou no mínimo, fervoroso simpatizante de André Ventura. Fazia-o por desporto, e pelo prazer de ver sangue a ferver. Acho. Nem eu o sei. Existe este véu tabu que a meu ver envolve André Ventura, o partido CHEGA, os seus críticos e apoiantes, e até os meus próprios preconceitos. Sinto que me vão espetar um dedo no olho se me aproximar sequer do assunto, seja pela esquerda ou pela direita. Nem consigo pensar sobre o que realmente penso sem que surjam por detrás de mim vultos ansiosos por aceitar novo soldado raso nos seus grupinhos. Também não sei se quero pensar no assunto. Sei que quero falar, porque alguém me disse para não falar, mas de momento não me recordo sequer de ter sido impedido de falar. A não ser que a senhora do café, entre o seu "Bom dia! Vai ser um cafézinho?" e o seu "Quer cheio ou curto?", disse também "Ouve lá ó facho/esquerdalha de merda! Tu vais mas é ficar de bico calado, pá! Disseste coisas boas/más sobre o CHEGA pela última vez!". Se o fez, não ouvi, mas podia ter estado completamente absorvido a contar as moedas que tinha na carteira para pagar o café. Não sei. Sei que algo me impele e me impede simultaneamente de falar, verdadeiramente. Se tivesse que apostar, diria que é o umbiguismo e a cobardia que em mim residem, respectivamente, mas sou muito azarado, e portanto não me fio muito nestas apostas.

No entanto, atrevo-me.‌‌

Parece-me, através dos meus olhos mal treinados e ouvidos sem experiência, que muito do burburinho negativo que rodeia André Ventura e o seu partido é excessivo. Parte de mim sentiu, quando André Ventura avançou primeiramente para a ribalta, que seria uma voz controversa e incisiva, com certeza, mas também pertinente, mesmo que abertamente de direita. Um David brandindo espada contra o tornozelo de um Golias. Quem é o Golias neste cenário? Escapa-me. E por achar também que o status quo actual é maioritariamente de esquerda, aceitei com um q's'lixe a sua presença no parlamento. Também, era só a porra de um lugar. Qual o mal, não é? Iniciou-se, depois, o acumular de uma série de episódios menos felizes que, de uma maneira ou outra, iam deteriorando a primeira impressão que construí do homem: a sua objecção para com a "subsídio-dependência" que pelos vistos marca a comunidade cigana, pareceu revelar alguém disposto a embrenhar-se num assunto complicado e de difícil resolução, algo de louvar, suponho, mas rapidamente revelou também um outro motivo mais insidioso - o ventriloquismo do preconceito colectivo - , posição reforçada quando sugeriu confinar toda a etnia; o seu cântico a favor da redução do número de deputados e secretários de deputados e estagiários dos secretários dos deputados, entrou em contraste agudo ao se descobrir que o seu escritório (que, relembre-se, auxilia um único deputado) era um dos maiores, proporcionalmente falando; toda a ideia de estancar o poder do Estado em determinados assuntos, e privatizar até ao tutano, que, apesar de gostar em teoria - privatização gera competição, culminado ultimamente em melhores serviços a preços mais acessíveis - assusta-me o sussurro anarco-capitalista que dorme nessa ideia, e que ressona "uns-porcentos"; mais recentemente, aquele fiasco de proposta, que visava como que fanar ovário de outrem, se esse outrem decidisse terminar gravidez involuntária dentro de uns parâmetros "não aprovados", e tudo bem, é verdade que a proposta foi chumbada pela grande maioria dos militantes do CHEGA, mas de repente todo o partido transformou-se num jogo embaraçoso de "...olhem para a vossa esquerda...agora olhem para a vossa direita...um de vós quer surripiar ovário alheio."; a castração obrigatória de pedófilos, a pena perpétua, o BES (ouvi algo na televisão, pareceu importante), e as aparentes inconsistências ideológicas que pessoas mais inteligentes que eu decifraram no programa político do partido, programa esse que nunca li, e que nem quero ler, mas devia, e como tal não posso afirmar seriamente ser contra ou a favor do CHEGA, mas porra, eu sei lá! Eu sei lá...porque raio é que eu estou a falar desta merda: política. Política! Sempre equiparei política a uma série que nunca acaba, com mais de mil temporadas, que estreou ainda nem os meus egrégios avós entretinham a ideia de se paparem. Para compreender actualmente o que motiva as personagens desta série, na temporada número mil e tal, tenho que revisitar as primeiras temporadas, realizadas em 1910s, que devem ter uma definição muito má, milagre se for 240p. Tenho lá tempo para isso. Caguei para a política! Foda-se, se o cabrão do Ventura existe ou não, pouco interessa! Aliás, digo desde já, das duas uma: ou a) o gajo revela-se, no máximo, tresloucado, mas porreiro e firme na métrica de gajo bacano, o que, se for o caso, óptimo, dorme tudo descansado; ou b) o gajo realmente é facho, e quer exterminar o que ele considera escumalha - tudo à esquerda do bege - e viver Portugal de braço no ar, o que, se for o caso, óptimo, dão-me finalmente uma boa desculpa para ir para a guerra, ser desertor, pegar numa guitarra e numa boa voz, e ser o Zé Mário Branco desta geração, que bem precisa. Seja André Ventura o que for, é bem-vindo, pois servirá de combustível para eu pôr no tanque, na pior das hipóteses. No tanque criativo. Criatividade, criatividade, criatividade, e o resto q's'lixe. Arte acima de tudo, não é? Sugiro que caguemos como um colectivo nos nossos conterrâneos que sofrerão às mãos do fascismo, pois interferem no processo criativo, que me impede de arte arte arte. Esta é a minha real posição. E enquanto cuspo esta peta de puto, veio-me à consciência o real culpado de eu estar a escrever esta desnecessidade de "notícia": Ricardo Araújo Pereira. O cabrão do Ricardo Araújo Pereira pescou-me era eu criança, usando como isca a sua genialidade humorística, e forçou, desde então, os meus olhitos de gaiato e jovem-adulto a acompanharem o lento degenerar da sua carreira em comentador socio-político-cultural. E eu, feito ovelha, sigo o gajo para onde ele for, e anseio agora também ser, para além de comediante (ou o quer que isto seja), comentador sócio-político-cultural. Foda-se, Ricardo Araújo Pereira, porquê? Entretém-te de outra maneira, pá! Faz como o Bruno Nogueira, e vai para o teatro, ou então como o teu amigo gordo, e vai fazer pães, para desanuviares, e voltares fresco para a comédia! Foda-se! Eu não quero ser comentador sócio-político-cultural! Eu quero fazer rir, pá! Vai-te foder, Ricardo Araújo Pereira, prefiro o Tiago Dores!

II. Constroem-se Manifestações nos Quintais das Cidades, e Eu Aluado Imploro por um Pouco desse Caminho!

   Antes de prosseguir, noto relevante frisar uma vez mais o quão analfabeto sou nisto da política. Para garantir que isto fique ponto assente, revelo que não sabia do rentrée político do partido CHEGA, não sabia que seria um dos únicos a fazê-lo nestes tempos de Covid-19, e não sabia do que se tratava. Aliás, quando ouvi pela primeira vez disto do rentrée, o meu primeiro pensamento foi algo do género "Uau, já é dia 31 de Dezembro? Realmente isto da quarentena fez com que o tempo passasse muito depressa!" Apercebi-me momentos mais tarde que confundia rentrée com réveillon. Enfim, não vivo a vida política.

   Feito o caveat, convidaram-me para acompanhar o protesto um dia antes deste acontecer. Não me convidaram a mim em particular, mas sim um grupo no qual eu estava inserido, grupo este que em nada é político (no sentido de adjectivo comum, não de adjectivo poético). Foi um convite natural, que tanto poderia ter sido para ir ver um filme ou comer um gelado. Decidi aceitar. Pareceu-me tema interessante, e repleto de valor jornalístico, ideal para propulsionar esta minha carreira que não é minha (não sou Doutor de Jornalismo). Chegado o dia, fui ter com quem me convidou, às seis da tarde, ao parque da cidade. Deparo-me ao chegar, com uma mão meio-cheia de pessoas, os protestantes, deitados no chão a escreverem em cartazes de cartão barato ou cartolina amarelo-canário, com caneta de feltro preto, perto de um café. Receberam-me simpaticamente, mostrando-me alguns dos cartazes que passaram a tarde a fazer. Haviam os clássicos do "...és fascista...xenófobo...racista...", e um que achei particular graça: uma paródia do fresco pintado no tecto da Capela Sistina por Michelangelo, em que Salazar desempenhava o papel de Deus, e André Ventura o de Adão, e lia-se em baixo "A Criação do Fascismo". Após sorrir, fiz questão de colocar em pratos limpos, o quanto antes, as motivações por detrás da minha presença: ser observador imparcial, pseudo-jornalista, lá para documentar e registar, abertamente subjectivo. Acho que, em retrospectiva, fiz um péssimo trabalho em garantir esta posição. Perguntaram-me se não me importava de tirar umas fotografias e filmar uns vídeos quando o protesto iniciasse, e também que levasse uma roupa preta. Não encontrei mal nos pedidos feitos, pelo que os aceitei a todos. Enquanto acabavam os seus cartazes, discutiam a banda sonora ideal que complementasse o protesto - uma forte inclinação para as músicas de intervenção que tentaram derrubar o Estado Novo - e discutiam também a necessidade cautelosa de tapar as tatuagens e madeixas do cabelo que, de tão únicas, poderiam identificá-los sem querer. Entusiasmados e determinados com o evento, não havia dúvida ou hesitação nas conversas que tinham ou nos slogans que escreviam ou nos ideais que cicatrizavam na alma. As suas convicções eram elevadas ao quadrado, ao cubo, e à certeza de erudito. O inimigo era claro, tal como o seu pecado, e restava apenas protestar.

   Na minha espera, surgiu mais uma mão meio-cheia de pessoas, protestantes também. Cumprimentaram-se, e cumprimentaram-me. Comentaram os cartazes, tal como eu o fiz, e preocuparam-se com o tapar das tatuagens e dos cabelos berrantes, tal como os outros o fizeram. Brincavam com um megafone de plástico, testavam cânticos no dito megafone, e riam-se seriamente. Perguntei se alguém conseguia dar-me boleia, visto que na altura tinha o médio direito do carro fundido, e conduzir à noite sem um médio dá direito a multa. Ainda não era de noite, mas por não saber a que horas iria terminar toda aquela demonstração, achei melhor não arriscar. Existiam dois carros disponíveis, e uma das protestantes voluntariou-se para me levar, juntamente com outras três pessoas. Esta protestante, que intitularei de protestante-mor, condutora do automóvel, tinha um claro controlo sobre as rédeas daquele grupo, rivalizada só esporadicamente. E quando rivalizada, aplicava o seu maior trunfo: "...em Lisboa era assim que fazíamos...". Touché.

O parque naquele dia estava cheio de vida, com crianças, felizes, a correr e a brincar, e os seus pais sentados no café, a beber imperiais. Imbecis. Tanto os pais como as crianças não faziam a mais pequena ideia de que dentro de poucas horas estariam a ser protegidos do neo-fascismo português que chegou para os comer, e que paria em Almancil. Pois que chapinhem nas suas ignorâncias, digo eu. Podiam dar-se a esse luxo, graças a manifestantes daquele calibre, manifestantes que eu agora acompanhava. Carregaram corajosamente todos aqueles cartazes debaixo do braço, atravessando a esplanada do café pela geodésica, em direcção aos seus carros. Discuti brevemente o meu propósito com uma das manifestantes, aproveitando para fazer publicidade a Demónimo, e fiquei satisfeito quando recebi como troco um entusiasmo revestido em cápsula de açúcar na forma de "Oh! É jornalismo subjectivo!" Sim, de facto, o é. O é.

III. Viagem Estonteantemente Mundana. Almancil em Topless: Seio Sórdido do Neo-Fascismo à Espera de ser Chupado. Aguentará a Tetina tanto Dente? Haverá Dente Sequer?

   Sentei-me no banco de trás do carro apertado, que parecia ser (mas não era) um Citroën Saxo, encostado à janela, rodeado, por todos os lados, de manifestantes, e eu, com cartazes e cartazes a transbordar do meu colo, enquanto tentava colocar um cinto particularmente casmurro, senti um marcha-atrás delicado, e moção ansiosa por Almancil. "Para onde vamos?" perguntei eu. "O comício vai decorrer num bar. O Medusis. Eu trabalho lá." disse a protestante interessada na minha veia jornalística. Fumo de cigarro esvaía-se pelos cantos do automóvel em movimento, Zecas e Faustos e Zémários e Sérgios e Valetes a pingar das colunas carentes de baixo, abafadas por karaokes amadores sincopados e interlúdios enamorados com a vida de revolucionário, e garrafas de mini a servir de cinzeiro, e a velocidade e a velocidade e a velocidade um pouco abaixo do permitido por lei, e os solavancos, e as travagens atempadas para subir lombas desnecessárias, e os risos, e a roupa preta preta preta, e as certezas, e os espreitares, e o decidir onde estacionar, e a fantasia mascarada de medo de ir preso ou de entrar em confusão com a bófia ou nazis, e a virtude, e o exorcizar com punho fechado, e a SIC ao fundo da rua, e a câmara a queimar-me a cara, a realidade de tudo aquilo, e o rápido aperceber de que, naquele momento, era mais do que um observador imparcial, e sem dar por isso, transformei-me num manifestante. Faux-Manifestant. O nono passageiro. Quasi-xenomorfo. Ingenuamente hipnotizado. Hi - pno - tizado. Hipnotizei-me com o filme que protagonizava quando me disseram para sair...sair do carro. Saímos do carro. Estacionados num descampado, a poucos metros do evento. Congregámos com a outra mão meio-cheia que viajou no outro carro, e que estacionou igualmente no descampado. A protestante-mor engendrava directrizes, e eles escutavam o seu pensar. Decidiram ir em filinha até à entrada do Medusis club, e apontaram para mim, com indicadores inquisitivos, e disseram, quase que em uníssono "Tu! Tu aí! Filmas-nos a protestar?" e eu disse "Bem...tudo bem. Tudo bem, eu filmo-vos." E lá seguimos nós em fila indiana, na berma da estrada que ia dar ao Medusis, na ausência de um passeio, presos aos cartazes que se dobravam com o vento. Avistavam-se ao longe os GNR a "controlar o trânsito", e dois apoiantes de Ventura, de máscara obrigatória, customizada com a palavra CHEGA, "protegiam" o recinto. Já na entrada do club, um "Grândola Vila Morena" cantava da coluna JBL que traziam, em loop, pontuada por vezes com o pertinente anúncio da Spotify (diria que, se é para ter Spotify, a atitude mais de esquerda é não ter a versão premium). Lá ficaram, de punho cerrado, em órbita no céu, como se achassem ser astro flamejante, e que talvez o fosse. O Sol quente da tarde enobrecia aqueles cartazes baratos, e enaltecia a dificuldade que é permanecer em pé, de punho cerrado no céu, a aguardar. Simplesmente a aguardar. A ânsia suprema deste grupo de manifestantes centrava-se em garantir que a mensagem que queriam transmitir tinha como audiência todo aquele que pertencesse ao comício, em especial, André Ventura. André Ventura esse que estava atrasado. Mas a perseverança daquele grupo de protestantes era imbatível, e criariam raízes no próprio asfalto, se necessário, até que os seus objectivos fossem correspondidos.

   Passado cerca de trinta minutos, aperceberam-se de que à entrada do Medusis nada concretizar-se-ia. Faltava movimento. Faltava obstáculo. Faltavam olhos que se indignassem. Faltavam apoiantes do CHEGA. Não porque haviam poucos, mas por já se encontrarem dentro do club, e nós, cá fora, a protestar contra nada. Provou-se necessário alterar a abordagem. Adaptar. Percalços como este não existem. Nem se qualificam sequer como percalços. Decidiu-se, portanto, reinstalar todo o estaminé mais adiante, num baldio que fazia tangente com o Medusis Club, separado por uma vedação de arame revestido a plástico verde, que permitia, incrivelmente, observar com total nitidez a porta que realmente separava o mundo exterior, da orgia fascista que imaginávamos acontecer lá para dentro. E, ainda mais incrivelmente, era possível ver pessoas a atravessarem aquele portal, que separava este do outro mundo. Quem sabe, vínhamos mesmo a tempo para resgatar algumas daquelas almas, com o poder reabilitador dos nossos cartazes. Os manifestantes dispuseram-se em linha, paralelamente à vedação, e ergueram-nos ao alto. A incansável coluna JBL, perpetuava-se, e quem entrava por aquela porta, que se edificava no topo de uma pequena escadaria, via-se persuadido a olhar para nós, e para os nossos cartazes, e sentia-se a vergonha que expeliam, um embaraço grosso que sujava as escadas, resultado da clara consciência de serem de uma direita quase que encostada à parede. Patifes! Alguém, não me lembro quem, comentou que uma rapariga que andou no seu liceu, e na sua turma, se a memória não me falha, entrou candidamente porta adentro, deixando-se comer pelo monstro do fascismo lusitano, e rejubilámos, com um sorriso esculpido a doce escárnio: poder associar cara conterrânea, qualquer que fosse, ao abstracto do inimigo, aumentaria a probabilidade de o reencontrar mais do que uma vez, no Pingo Doce ou Continente, permitindo um revitalizar do...ódio?

   ...senti escárnio vindo dos meus camaradas, acho, mas por aquela altura, nem perto deles me encontrava, e enquanto se manifestavam colados à vedação, escrevia no telemóvel o que via e ouvia. O que é que eu via e ouvia? Estava tão longe deles! Resgatei do ar cacos das conversas que brotavam entre os manifestantes, como antídoto necessário ao tédio que suportava, e lembro-me de ter ouvido prazer perverso, ódio, escárnio, e o doce perene que se flutua na língua daquele que se convenceu, sem sombra de dúvida, acreditar naquilo em que queria a todo o custo acreditar. De uma conversa que nem ouvi. Até que ponto não terei eu preenchido os espaços em branco. Sinto-me sujo. Que traição estou eu aqui a cultivar, para com aqueles que me aceitaram? Permitiram-me acompanhar a manifestação que lhes era tão querida, mas esta não me dizia nada. Vejo eventos deste cariz através de um filtro cínico. Tudo treta. Ambos os lados. Jogos humanos. Exaltam-se com palavras como nunca vi. Fazem espantalhos uns dos outros. Se existem nuances naqueles discursos, devem-se ter escondido nos cabelos de quem participa. Fachos para ali, comunas para acolá, e as restantes palavras do dicionário com ciúmes. Não compreendo o propósito. Convicções políticas, consciencializações éticas, ou prédios de papel machê à chuva. A consistência é a mesma. As estruturas erigidas copiaram-se umas às outras no parâmetro da integridade funcional. Diferem apenas na mestria envolvida: existe brio na construção de um prédio de papel machê. Tenho mais que fazer. Que merda faço ali? Estive umas boas horas, de pé, com o telemóvel na mão, ou a escrever ou a tirar fotografias. Para quê? Escrever o quê? Qual é, verdadeiramente, a história que pretendo contar? Os apontamentos retirados naquele dia tresandavam a um pseudo-intelectualismo sardónico insuportável… Senti prazer por me sentir à parte. Senti prazer por não pertencer nem ao CHEGA, nem ao grupo de manifestantes. A visão cinematográfica que procurei adquirir naquele dia, não se motivou pelo desejo de relatar o evento, ou pelo desejo de contar a história, mas sim pela ânsia de alcançar uma posição de superioridade. De me ver acima das convicções sentidas. Altivez. A câmara aponta de cima para baixo, e eu finjo ser o seu operador, não por amor à arte, mas porque assim posso também eu olhar de cima para baixo. Sou altivo altivo altivo superior superior superior não sinto dor nem sinto dor nem prazer, sou um tiro na testa à espera de acontecer, sou mãos desrespeitadoras, sou estrangulador do bom e do moral, e tenho razão, e tenho razão, e tenho razão quando digo que se manifestam à vez pelo prazer de dizer Eu sou...e um espaço em branco para se colorir pelos números permitidos, ou para ser violado com uma palavra-chave qualquer, feita em cliché.

IV. Evangelho Não-Canónico segundo "Jesus Cristo"

  Gostava que este meu cinismo tivesse uma morte violenta. Gostava que se visse ao espelho enquanto morre lentamente. Olhando para todos eles - tanto os esquerdalhas comunistas com quem vim ou os fachos de pólo e ganga, que fogem bastante à imagem que aprendi a temer - vejo apenas bonecos desnorteados, que se movimentam por aí enquanto as pilhas o permitirem; ou talvez se manifestem convictos, e verdadeiramente convictos, de que algum ideal superior a todos eles existe e merece ser protegido, algo que eu, palhaço de profissão, nunca entenderei. Estive na manifestação não-convicto, tal como poderia muito bem ter estado no comício do CHEGA, não-convicto também. Nada me poderá, ou poderia vir a prender a qualquer um dos grupos, por mais congratulações que recebesse ao entrar.  E nisto alcanço uma conclusão, que jamais alcançaria se não fosse esta elevadíssima noção que tenho de mim próprio: tanto os apoiantes do CHEGA, como os que se manifestam contra o partido, lutam uns com os outros futilmente. Na realidade deviam lutar contra mim. Eu é que sou o verdadeiro vilão, por não ter convicções, por não ter consciência, por ser agnóstico moral, e por não querer saber. Eu é que devia ser crucificado. Eu é que devia morrer pelos pecados dos apoiantes e dos opositores do CHEGA. Eu é que devia ser apedrejado com labéus afiados. Eu é que devia ser negado três vezes por um Pedro qualquer, antes de caminhar ensanguentado até ao cume da montanha, e morrer entre ladrões, sem nunca ressuscitar. Quis, controlado por devaneios infantis que roubei de um livro americano, ser jornalista por um dia e documentar uma experiência, qualquer que fosse. E consegui no processo trivializar almas mais puras que a minha. Fui manifestante acidental por mero capricho, e teria sido fervoroso militante de André Ventura por capricho também, se as condições o permitissem. Estou vazio, não existe esqueleto que me sustente, movo-me ao sabor de um vento que não se sopra, sou tentáculos de estimação que invadem quando menos se espera, sou instigador, provocador sem método, sanguessuga, interesseiro, sou alma amorfa, sou mente presa na ponta de uma faca de manteiga, sou dissimulado fingido e hipócrita e...sou pau mole para toda a obra: hoje sou isto, amanhã sou aquilo; hoje sou carpinteiro, padeiro, pescador, amanhã sou músico, poeta, realizador; hoje sou professor, investigador, empresário, jornalista, accionista, amanhã sou pai, guru, prostituto, trolha, padre, ama-seca, bêbado, voyeur, homicida, ou nem estou cá ou aqui ou ali… e não se deixem enganar com esta lengalenga de mártir; é assim que vos apanho, é assim que vos lixo, é assim que vos fodo, é assim que vos violo, é assim que vos vendo no mercado negro a troco de ninharias, é assim que vos traio, é assim que vos sujo, é assim que vos queimo, é assim que vos sacrifico, é assim; sugiro que me cortem aos pedaços, espalhem-me ao longo do Guadiana, escondam os vossos filhos, e rezem para que eu volte nunca mais!

V. Encontro Inusitado com a Autoridade. Relatórios Alados Presos na Gaveta Metafórica. 15 Minutos de Fama e Desabafos do Pretensiosismo que Domestico.

   Olhei para a minha direita e notei que dois GNR aproximavam-se do meu bando, determinados. À medida que se aproximavam, as suas feições revelavam-se, e reparei que eram os mesmos GNR que "controlavam o trânsito" há pouco. Refugiei-me no telemóvel, fingindo escrever, para que percebessem quem eu era realmente: um mero jornalista longe de casa, com medo e com frio. No andar vagaroso, chegaram a uma dúzia de palmos de mim, quando decidi colocar a máscara, que com a pressa, ficou de cabeça para baixo, e ataquei primeiro com um eficaz "Boa tarde...". Treinados na velha arte da simpatia, sem eu saber, ambos os GNR desviaram-se habilmente do meu "boa tarde", e ripostaram com um "boa tarde" unicamente deles, sincero, que me apanhou desprevenido, e alojou-se certeiramente nas minhas ventas. A força do impacto por pouco não me nocauteou, mas foi o suficiente para me deixar atordoado, envolto numas estrelas de cartunista que só eu tinha a capacidade de ver. Neste meu momento de fraqueza, os GNR desferiram o golpe final, cuja execução provou-se impossível de resistir, e fracassei quando ouvi, com a maior boa-educação que este mundo alguma vez presenciou, "Quem é o líder? Você é o líder? Não viemos chatear nem nada, têm todo o direito de protestar pacificamente. No entanto precisávamos de obter algumas informações. Nada de mais. É para pôr no relatório." Relatório? Que relatório viria a ser este? A palavra "relatório", por virtude do meu passado como estudante, aterroriza-me como poucas coisas. Disse que não, não era o líder, e que estava ali apenas para documentar todo o evento, na perspectiva do manifestante. Não os convenci. Notava-se nos olhitos que espreitavam desconfiados por detrás da máscara, dotados de uma densidade que só agentes da autoridade conseguem exibir, a falta de confiança no que eu afirmava ser.

   O burburinho autoritário não passou despercebido ao grupo, e depressa uma das protestantes veio socorrer-me das garras tiranas da simpatia. Interveio de alguma maneira que não me lembro, e iniciou-se uma saraivada de perguntas por parte dos GNR que, em genuína retrospectiva, eram de uma desnecessidade suprema: "Nome da mãe? Nome do pai? Morada? Número de telemóvel? Comida favorita? Se te encontrasses preso numa ilha, que livro gostarias de ter contigo para te fazer companhia?" Ainda perguntámos qual o racional por detrás daquelas interrogações, e a resposta gravitava sempre em torno do mesmo famigerado relatório. Que relatório viria a ser este, imaginava eu, que obrigava dos seus redactores um mapeamento perfeitamente fiel da personalidade dos seus personagens? Que romance russo andam eles para ali a desenvolver nos seus gabinetes e escritórios policiais, que exija detalhe tão profundo? Andarão eles com um pequeno psicólogo no bolso exactamente para situações daquele género, em que se prova fulcral um rápido, mas preciso, teste de Myers-Briggs? Tudo perguntas às quais desconheço qualquer resposta que as dignifique. Sei que, feito animal de quatro patas, ofereci de bandeja as informações que pediram, às quais tanto torci o meu nariz por princípio. Mas em prol da cobardia que me permite em pé, acabei por não levar a cabo aquele pequeno protesto ao autoritarismo policial. Aqueles dois GNR sabem agora mais sobre mim do que muita gente. E lá os observava eu, a escreverem num pequeníssimo caderno preto as drageias de ouro que são estes factoides da minha vida, e não pude deixar de reparar no quão classicamente bela era a caligrafia de quem tirava os apontamentos. Redonda, legível, riscava-se no papel sem esforço ou precipitação. Surgia simples. Recordou-me bastante da primária, e na dificuldade que sempre tive de domar a minha própria caligrafia, e de a deixar assim, redonda e bela, dentro da linhas, uniforme e precisa. Com o passar dos anos, adoptou um síndrome pernicioso de maisculização que muito irritava os meus antigos professores de português. Este guarda, porém, havia de ter sido o menino de ouro desta gente ligada às letras. Perdi momentaneamente a concentração enquanto saboreava aquela letra, e senti-me tentado até em fornecer mais conteúdo para o relatório, só para continuar a ver aquele desenrolar de caligrafia, através de uma confortável posição nos bastidores. Poderia inventar histórias, sobre bombas caseiras e espingardas na bagageira do carro, mas duvido que mantivessem a compostura, muito menos que decidissem primeiramente apontar o que disse, e só depois preparar as algemas. Caramba, o que eu dava para ler aquele relatório! Infelizmente sei que será redigido a computador, mas pagava bom dinheiro para obter uma versão hardcover escrita à mão por aquele senhor. E se me arranjassem um equivalente vocal àquela letra para um audiobook... Todo este pormenor, acoplado à simpatia sobre-humana dos GNR, e sou incapaz de não me desculpar por me ter desmanchado sobre pressão, e de ter despejado tudo o que é informação pertinente a meu respeito. Não me via a causar tamanha desfeita àqueles dois guardas, e não compartilhar os segredos pedidos. Espero que ganhem algo tipo Pulitzer com aquele relatório.

   Eventualmente chegaram ao verdadeiro motivo que perdoasse aquele incómodo, e acabou por ser algo tão frívolo como "precisamos que venham para a parte da frente do recinto porque isto é propriedade privada..." ou uma outra tanga qualquer. Para quê todo o teatro inicial, nunca compreenderei. Assim o fizemos, com um ou dois comentários sarcásticos pelo caminho, e regressámos para o grande átrio aberto que era a entrada do club, mesmo à beira-estrada. Apercebemo-nos rapidamente que André Ventura ainda não tinha aparecido, facto que nos fortaleceu os ânimos: ainda vínhamos a tempo de o ver. Decidimos manter o modus operandi revolucionário que desenvolvemos umas horas antes, e erguemos novamente os cartazes reabilitadores e despertámos a mesma música de revolução. Eu simplesmente sentei-me algures, perto dos protestantes, tirando umas fotografias aqui e ali, quando me dava vontade, perto dos carros que se aceleravam naquela estrada, por vezes interrompidos por GNR do mesmo calibre que há bocado. Buzinavam ao passar, gritando de vez em quando uns "Vão se foder!" e variantes, ou "Ventura!" e variantes, sempre com um característico efeito de Doppler. Aparentemente a nossa modesta demonstração "política" angariava agora alguma atenção, e não demorou muito tempo até emergir de sei lá onde uma senhora de olhar ansioso, com um andar frontal e determinado, de microfone empunhado na sua mão direita, e um homem de gigante câmara ao ombro, como acessório a rulote. Ambos SIC Notícias. No local por interesses em tudo semelhantes ao meu, embora suspeite deles um classicismo enfadonho, centrado em factos e objectividades fáceis de dissecar. E profissionalismo, suponho. Entrevistaram a nossa protestante-mor, e até hoje me espanto com a capacidade que tiveram de conseguir discernir correctamente entre manifestantes, o cabecilha. Gosto de pensar que adquirem com o curso de comunicação social um olfacto apuradíssimo, especializado em encontrar no meio de milhares de pessoas, a tal. A que possui as pistas. A que indica o caminho. Cheiram a história à distância! Lá fui a correr, fintando o tráfego, e instalei-me no ombro livre do operador da câmara, com o telemóvel preparado para documentar o momento. Por dedicar a frágil concentração que possuo somente à qualidade da imagem, abstraí-me por completo do discurso oferecido à televisão. E por sofrer de uns tremores benignos que me assustam as mãos periodicamente (falta de zinco ou ferro no sangue), a imagem gravou-se-me no telemóvel tremida. Servi apenas de adorno à retaguarda da SIC durante curtos minutos. Para quem estivesse a ver, aparentava ocupado e diligente com o meu trabalho, e portanto na altura dei pouca importância à minha incompetência. Regressei para o sítio em que me sentava, e procurei escrever algo. Para passar o tempo. Não tinha muito a dizer. Acontece o mesmo quando alimento a fantasia de acordar cedo para ir escrever na esplanada enquanto bebo café. Quando me deparo com a realidade da situação, nunca sinto a necessidade de escrever. Até me sinto constrangido em retirar do bolso interior do meu casaco o pequeno caderno em que escrevo. Sinto-me indecente. Em parte porque não escrevo de todo naquele caderno, fora quando assaltado por tal fantasia. Se é para escrever, faço-o no computador. E se por vezes me invade uma ideia resvaladiça, tento capturá-la o quanto antes, com certeza, mas sempre com o telemóvel, por ser mais eficiente. Agora que penso nisso, acho que nunca usei o caderno que tenho no bolso. Ainda assim, decido mantê-lo lá. Em teoria, porque gosto de me imaginar capaz, um dia, de exibicionista: a fumar um cigarrinho já inútil, mais filtro que outra coisa, dolentemente torcido em torno do meu caderno e da minha mão agarrada a um lápis que encontrei no chão, a suspirar com cada travar de tabaco, de óculos escuros que mal me cobrem as pálpebras, e uma perfeita dissociação a tudo o que me rodeia. Assim me imagino, todos os dias, e assim me preparo para sair de casa, todos os dias. Claro que quando confrontado com a realidade da situação, qualquer que ela seja, reverto-me espontaneamente aos costumes habituais, e aos rituais a que me contagiaram sem eu dar conta. Instauro em mim um conservadorismo ao qual sou contra. E a ideia de fumar enquanto escrevo num minúsculo caderno preto, honesto em relação ao que sinto, desvanece, e recorro sempre ao telemóvel. No fundo, porque permite-me camuflar.

VI. Lacaio do Submundo à Carga: Protector do Visionário. Eminente das Brumas Proféticas, Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado Banqueteia-se com As Almas de Quem o Segue. Devia ter Lanchado Antes de Vir para Aqui.

   Descansava absorto e sentado, quando o presidente da distrital de Faro do CHEGA decidiu invocar-se do submundo destro que batalhávamos, e lançou-se a nós desprotegido, de smartphone em punho, com o dom da palavra a seu lado. Correu até nós, no seu fato bem-passado, por debaixo do seu cabelo em gel, enquanto filmava os manifestantes. "Sabem o que é o Marxismo? O sistema de ensino falhou estes jovens! Não sabem que o Marxismo é errado? Ensinaram-vos mal!" e outras retóricas que partilhava (partilhar talvez não seja a palavra que procuro) não só connosco, mas também com uma audiência que assistia através de um Facebook Live. Aproveitou-nos para se desfilar, a si e às suas ideologias. Aproximava-se em demasia dos manifestantes, fervendo-lhes a pouca pele que tinham à mostra com a câmara de baixa resolução do seu telemóvel, arremessando simultaneamente a retórica a que nos acostumou. Retaliaram com as armas que tinham ao seu dispor - argumentos e moralismos - mas este ser era dotado de uma determinação casmurra de jerico, e cedeu nem um milímetro do espaço que conquistou. E ali permaneceu, no seu púlpito invisível, obrigando-me novamente ao activo, a um estado de documentador que por aquela altura já me era muito conhecido, e igualmente fastidioso. E por tal razão nunca perdoarei aquele presidente da distrital de Faro do CHEGA. Copiei-lhe o método, e apontei-lhe a câmara do meu telemóvel à cara, filmando as "conversas" que tentava estabelecer com os meus camaradas. A este ponto, escusado será dizer que não só não registei muito do que ele disse, como também tenho agora no cartão de memória, vídeos abstractos aos tremeliques, perfeitamente inúteis.

   Desapareceu, eventualmente, envolto no mesmo mistério com que surgiu. Acho que nem se despediu de nós. Nem se moveu de maneira humana para regressar à dimensão que o viu nascer. Acho que simplesmente desapareceu. Nunca mais o vi. Algo que estranhei imensamente, visto que ele ainda estava a aquecer, com uns "Marxismos Culturais" aqui, e uns "Esquerdas Regressivas" ali, prestes a prescrever uma lição eterna a qualquer um dos protestantes que se atrevesse a interferir com o seu discurso. Porém, optou por desaparecer.

   Era um final de tarde, num final de Verão. Esteve calor o dia inteiro, e era de esperar uma noite igualmente quente. Todavia, não foi o que observei ou senti, momentos depois do presidente da distrital de Faro do CHEGA reverter ao seu habitat. Nenhuma ciência era capaz de explicar os fenómenos atmosféricos que experienciei: à medida que a noite se fazia convidada, um acumular de geada pousava na escassa vegetação rasteira que delineava a estrada. As árvores torciam-se e desesperavam com o forte vendaval que surpreendeu até o próprio Verão. As mãos em gelo, imploravam um pouco do bafo que sempre as aconchegou, mas a máscara impedia tal prazer, e um nevoeiro espesso de miasma negra infecciosa ocupou à força os níveis mais baixos da atmosfera. O ar, de tão rarefeito, obrigou alguns a encontrar descanso na berma da estrada, ofegantes. No horizonte era visível um céu histriónico, relampejando e trovejando como nunca vi, caminhando cheio de som e fúria em direcção ao Medusis Club. Uma bruma destrutiva entranhava-se no rico tecido que compõe o espírito de Almancil, e eu senti uma enorme necessidade de telefonar à minha mãe. Temi, naquele momento, pelo seu bem-estar. Não sabia como interpretar este nevoeiro. Muito do mito mundial avaliaria este género de fenómeno como presságio negativo, mas o folclore português ensinou-me a depositar fé e esperança no nevoeiro. Esperava-nos o quê? Perdição ou a salvação Lusitana?
   Do interior da bruma, que agora pintava em aguarela tudo o que o olhar alcançava, distinguiam-se duas fortes fontes de luz de um amarelo penetrante, e a ténue silhueta de um carro corporativista. "É ele!" disse um dos protestantes a meu lado, esforçando-se para recuperar o equilíbrio que lhe fora roubado pelo nevoeiro sobrenatural. De facto, era ele. André Ventura finalmente chegou ao seu próprio comício, e os olhos arregalados dos meus camaradas manifestantes indicaram o culminar da nossa demanda a Almancil. E perante a visão de Ventura, optámos por reagir como qualquer outro revolucionário: erguemos bem alto os nossos cartazes, muito além dos limites estabelecidos pelo nosso alcance, e pressionámos o botão que controla o volume da coluna durante vários segundos, garantindo assim o som máximo que aquela JBL tinha a oferecer. Isto fizemos em conjunto, enquanto nos aproximámos de Ventura, gravando-lhe na memória a nossa presença, em protesto ao que ele representa, embora mantivéssemos simultaneamente uma respeitosa distância de segurança, não só por medo ao vírus, como também à possibilidade que nos seduzisse com o seu olhar, e nos convertesse ao extremismo de direita (talvez este fosse um medo muito próprio).

   Agora tão perto dele, não pude deixar de me sentir desapontado. Era este o responsável pelo ressurgimento do fascismo lusitano? Este advogado benfiquista anti-vermelho cujos olhos encontravam-se exageradamente separados um do outro? Este conservador fã de Eurotrips? Este queque? Claro que André Ventura calou-me logo quando decidiu comer um bouquet de bébes trigémeos que uma das suas apoiantes trazia para seu deleite, mesmo à minha frente. E quando terminou de se empanturrar, deu permissão à mãe para que comesse o que restava. E esta assim o fez. É isto que andam a fazer nos comícios? Andam a mastigar bébés oferendados como sacrifício por parte de quem o apoia? Não sei se sou fã...

VII. A Grande Fuga. Karma Cósmico nas Traseiras de um Citroën Saxo. Sujidade e Podridão numa Noite de Angústia.

   Retirámo-nos de vez, quando a vontade miudinha de zarpar para o estalo de certas e determinadas figuras que ali compareciam nos dominou. Claro que tal violência nunca concretizar-se-ia, convenhamos, mas por sentirmos em nós tal instinto, nada nos garantia que aqueles que o apoiavam não o fossem sentir também. A nossa presença tornara-se indesejada, e militantes e apoiantes e simpatizantes do CHEGA queriam agora partir para a segunda fase da rentrée, que, ouvi dizer ou li algures, envolvia sacrifícios de animais e ritos sexuais exclusivamente à missionário. Permanecer seria morrer, nestas circunstâncias muito particulares. Teríamos que deixar toda aquela realidade para trás, e viver, para lutar mais um dia. Mas fugíamos em êxtase. As caras daqueles que se manifestaram eram só sorrisos largos e risos sinceros. Comprometeram-se a um objectivo muito claro: o total e inequívoco expressar de princípios e valores éticos que carregam nas suas almas. E obtiveram sucesso. Disseram o que tinham a dizer. Fizeram acontecer no mundo a mudança que queriam ver acontecer. E exorcizaram Almancil do espírito maligno que o possuía. Tudo numa tarde.
   Apressámo-nos de volta aos carros. Corríamos eufóricos, eléctricos com os acontecimentos, recordando os GNR e a SIC e o presidente da distrital de Faro do CHEGA. Elogiámos o discurso que a protestante-mor improvisou para o enriquecimento da SIC Notícias, e esta emocionou-se, verdadeiramente, explicando ao mesmo tempo o seu estado de espírito no instante em que iniciaram a entrevista inesperada. Algo de belo fora conquistado naquele dia. Já se ouvia falar de mais manifestações, mais protestos, mais eventos! Mais, mais! Há que dinamizar! Há que organizar as forças da resistência! Há que...sei lá...mais! Revirava os olhos internamente, mas detestava-me por isso. Não era algo que quisesse fazer ou sentir, mas era-me incontrolável. A ideia de me atirar para um grupo, qualquer que fosse, em busca de integração e sentido de comunidade, ou mentes semelhantes, ou almas compreensivas, ou ouvidos atentos e empáticos, ou liberdade de espírito via prisão dum círculo rotineiro, era-me em partes iguais hilariante e deprimente. Quando me agradeceram pelo o que fiz naquela tarde, e pela ajuda que prestei, aí é que fiquei de rastos. Arrasaram-me completamente com compaixão. Ali estive eu, a servir-me como um abutre dos projectos dos outros, e das suas convicções, apenas por proveito próprio, sempre com uma aura de ironia ao pescoço, e ainda me agradecem no final. Onde está a retribuição católica que castigue o meu pecar? Certamente esta ganância por experiência não vingaria impune? Sorri e agradeci. Impossível seria traduzir em palavras a traição que cometera. Este seria um momento só meu. Mais um para adicionar à vasta gama de ocasiões das quais necessitarei penitência.
   Entrámos no carro da protestante-mor, esta ainda em choque com o que se passara naquela tarde. Não se calava. Sempre faladora, a recordar o que aconteceu, a estipular planos para isto e aquilo, espasmódica, de nervos em franja. Engatou a marcha-atrás para fazer a manobra de saída, ainda distraída consigo própria, acelerou, e bateu com a traseira do carro no tronco de uma árvore. Projectou-se-me a cabeça com um efeito chicote potente e longe de previsto, e bati violentamente com a nuca num pequeno espigão que por alguma razão estava embutido no banco de trás. Até fiquei enjoado. Que carro era este, afinal, que se demonstrou, no meio de tantos licenciados, como o mais culto de todos? Conseguiu, por meios de uma sabedoria cósmica inalcançável, ou através de um sexto sentido que o une ao Universo, identificar-me como o verdadeiro vilão de todo o episódio, e prescreveu-me um castigo que a minha veia católica masoquista há tanto ansiava. Leu algures, este detentor dos registos kármicos, a minha aberrante infracção da ética e da moral, e como tal, aplicou-me uma concussão assim que teve a sua chance. Esqueçamos Deus! Adoremos, ao invés, este Citroën Saxo (não acho que fosse um Citroën Saxo)!

   Já em casa, na cama, descobri-me insone. Ainda sentia vómitos da pancada e da condução pára-arranca a que fui submetido duplamente. Porém, por não saber ao certo porque sentia ainda aquela vontade de vomitar, temi traumatismo, e desesperei com a possibilidade de acordar morto. Para além disso, aqueles GNR sabiam agora o meu nome, a minha morada e o meu número de telemóvel. Se, no decorrer do comício do CHEGA, algo desse para o torto, nada impediria aqueles dois GNR de consultarem o caderninho preto, encontrarem o meu nome, a minha morada e o meu número de telemóvel, e de pensarem "Olha lá, este tinha cara de mafioso, não tinha? Sim, cá para mim foi ele. Se ao menos tivéssemos a sua morada e o seu número de telemóvel...poderíamos atormentá-lo e impingir-lhe um crime que não sabemos se cometeu, compondo assim, no processo, um relatório como deve ser: detalhado e completo. Oh, espera aí...o que é isto circulado aqui no meu caderninho preto? Ah, é a informação que desejávamos! Ele deu realmente tudo! Até o nome do pai e da mãe! Fantástico, depois de terminarmos com ele, destruiremos a vida dos seus pais! Nós temos acesso aos registos do IMT, e das Finanças, e da CGD e sei lá mais o quê, não é?! Até temos acesso a uns quantos gorilas dos SEF para fazerem o trabalho mais pesado! Sim, nós temos acesso a tudo! As Secretas Portuguesas, as Forças Armadas, a Interpol, os Israelitas do Krav Maga! O Magina! Arruinar esta família será tarefa fácil! E tudo porque ele seguiu cegamente a autoridade! Tudo porque não usou o seu pensamento crítico, e não questionou o que lhe era pedido! Tudo porque era ignorante aos seus direitos e deveres! Tudo porque não quis saber." Esperei a noite inteira por um vibrar de telemóvel em transtorno, socos na porta, seguidos de um eventual arrombar, acusações, depoimentos de falsas testemunhas, julgamentos, condenações, estadias em prisões, visitas mensais, familiares destroçados, que acabariam por se esquecer que apodreço na cadeia, e um final desolador, num beliche cheio de ácaros, atrás das grades. Que tarde mais inútil.

Nils Sógott

Nils Sógott

Ululei em protesto. A quê, não sei.