O Curioso Desaparecimento de Dr. Gonçalves

O Curioso Desaparecimento de Dr. Gonçalves

"Um homenzinho gorila, é o que é! De mãozinhas peludas e enrugadas, sobrepostas uma na outra para que sintam algum calor, e maneirismos de babuíno ou um outro símio qualquer...e nem vou falar da sua obstinada, e francamente, retrógrada ambição em impor sobre si vestes de um espiritualismo metafísico intragável, comprado a la souvenir em segunda mão numa loja dos trezentos! Porque raio é que o convidaste?!" perguntou Dr. Gonçalves, respeitado professor catedrático no departamento de filosofia da sua universidade, responsável pelo seminal livro "O Processo de Hermenêutica Livre do Homem Moderno como Meio Pós-Relativista de Individuação", ao reparar que, no meio da sua festa de aniversário, onde compareciam variados membros da elite da academia, colegas, amigos e familiares, encontrava-se sentado na sua poltrona especial de veludo bordô adquirida em lua-de-mel em Marrocos, Dr. Julião, um abécula de colete e laço com um doutoramento em sociologia e outro em antropologia. Não o suportava. Por mais belo que o dia fosse, o mero acto de recordar Dr. Julião arruiná-lo-ia imediatamente. E vê-lo sentado na sua poltrona especial, a comer uma fatia de bolo Floresta Negra, confeccionado por sua empregada doméstica, a menina Dora, precisamente para aquela ocasião, espoletava em si uma raiva imensa. Dr. Julião comia a sua fatia sem usar prato ou talheres - bastava-lhe um guardanapo - e a humidade do bolo comprometia a integridade do papel do guardanapo, desfazendo-o e colando-o à fatia, mas Dr. Julião mastigava-a ainda assim, vagarosamente, sem querer saber. Resquícios da massa achocolatada do Floresta Negra aprisionavam-se aos pelitos grisalhos da pêra que pendurava ao queixo, e Dr. Julião apercebia-se deste acontecer, solucionando-o com um arrastar da mãozinha peluda, limpando-se posteriormente às calças de fazenda cinzentas que usava. Quando se fartou da sua fatia, embrulhou-a no guardanapo húmido, e guardou-a no bolso do blazer, para mais tarde. Dr. Gonçalves assistia a tudo isto do outro lado da sala, e imaginava os horrores que poderia infligir a Dr. Julião pela falta de etiqueta. Casado com a sua esposa há mais de quatro décadas, eram falhas como aquela - convidar para um aniversário alguém tão aquém do esperado de um membro do mundo académico - que o faziam ponderar o divórcio, e que abafavam a culpa que sentia de vez em quando por traí-la há já dois anos com a sua estudante de doutoramento, a sensual Fábia, uma pequena ninfeta que o obrigou a deixar crescer o bigode, por gostar de o sentir entre as pernas, e que o apaixonou a um vício "controlado" de viagra e cocaína. "Querido, por amor de Deus, o Dr. Julião não é mau de todo. Verdade que pode ser um pouco...como dizer...rude na sua maneira de estar, mas é um homem imensamente respeitado dentro do seu meio, e ouvi dizer, disse-me a minha amiga Carla, aquela porca coscuvilheira, que receberá um prémio em honra ao seu extenso trabalho acerca daquela etnia suja sobre a qual escrevia longas histórias para a revista científica-"

"-chamam-se artigos, querida. Artigos. E só publica em revistas inferiores. Publicou uma vez na Nature. Uma vez! De resto publica somente em papel higiénico, porra! O que é que ele faz aqui?"

Dr. Julião domesticava uma unha no dedo mindinho mais longa que o habitual, que utilizava como cotonete quer para os seus ouvidos, nariz ou até umbigo, ou como palito para escavar as gengivas amareladas, libertando-as da comida com a qual se entreteve momentos antes. Na poltrona especial bordô adquirida em Marrocos, Dr. Julião utilizava-a para este último fim, quando avistou, do outro lado da grande sala, Dr. Gonçalves e a esposa a cochichar. Era-lhe claro que falavam sobre si, e portanto decidiu cumprimentá-los com um sorriso aberto e um espaçoso abanar de braço. Levantou-se da poltrona especial, deixando cair migalhas no assento, e cambaleou desajeitadamente até ao casal.

"Oh, meu caro doutor, deixe-me desde já parabenizá-lo! Não só pelo seu aniversário, a razão mais óbvia, mas também pelo seu brilhante seminário na semana passada! Realmente a proposta que defende, acerca da ultrapassada capacidade de interpretação humana surgir do mundo moderno e não do arcaico, é deveras fascinante! Não pude deixar de criar um paralelo com o misticismo religioso do antigo povo situado a-"

"-hmm hmm, muito obrigado Dr. Julião, mas de momento estou muito atarefado, terá que me desculpar." disse, espantado com o seu autocontrolo - tinha uma caneta de aparo no bolso da sua camisa, como era costume, e conseguiu não atravessá-la no olho baço de Dr. Julião. Mas desgastou todo o seu ser manter uma conversa minimamente cordial com o mono Dr. Julião. Virou-lhe costas assim que pôde, mas este agarrou-lhe o braço. "Por favor Dr. Gonçalves, precisava muito de falar consigo...em privado se possível. É realmente importante..."

"Pois, mas terá que ficar para uma outra ocasião. Marque com a minha secretária-"

"-por favor Dr. Gonçalves, é urgente. Teria que ser agora mesmo. Agora mesmo." Dr. Julião parecia verdadeiramente desesperado. Olhou para a sua esposa, e esta fez sinal, levantando as sobrancelhas finas pintadas a lápis negro, trazendo consigo duas pérolas entre pele enrugada e mal colorida com rouges e outros químicos, que indicavam claramente que participasse na vontade de Dr. Julião. Dr. Gonçalves optou em obedecer, quando reparou que Fábia acabara de entrar na sala, numa curta mini-saia com meia alta de rede preta, e alça do soutien à mostra, descaindo do ombro. Não só não queria estar na mesma divisão que a sua esposa e a sua amante, como também não aguentaria muito mais tempo sem tomar um speedball de viagra e cocaína, e atirar-se nu à carne por estalar da rapariga.

"Muito bem Dr. Julião, conseguiu o que queria...vamos lá então, siga-me para o meu escritório." Dr. Gonçalves orientou Dr. Julião por um trajecto absurdo em ziguezague pela sala fora, fintando o olhar da sua esposa e amante. Dr. Gonçalves abriu a porta do escritório, e deixou Dr. Julião seguir em frente. A cabeça passou-lhe por debaixo do nariz, e as marcas castanhas da idade salpicavam a brancura encadeante da sua calvície. Eram praticamente da mesma idade, mas nunca reparou em si, quando perante o espelho, as mesmas marcas da idade. Dr. Julião emanou também, ao movimentar-se tão próximo dele, um intenso cheiro a mofo, tabaco de cachimbo e contraplacado barato. Dr. Gonçalves descarregou a fúria que sentiu no lábio inferior, mordendo-o agressivamente até deixar marca. Fechou a porta, enquanto de costas para Dr. Julião, que já se aprofundava no escritório. "Então, partilhe lá comigo o propósito de toda esta privacidade no dia do meu aniversário...". Virou-se mesmo antes do final da pergunta, de olhos fechados, planeando abri-los aquando a terminasse, para garantir um certo gravitas que transmitisse o aborrecimento que sentia. Dr. Julião tinha agora as calças pelos tornozelos, e preparava-se para despir também as trusses. "Que raio, homem?! Que está fazer? Vista-se! Comporte-se como o membro da academia que afirma ser!"

"Por favor Dr. Gonçalves, confie em mim. Por favor." disse Dr. Julião, que com um repentino safanão removeu as trusses por completo. "Repare Dr. Gonçalves. Sou uma menina." Na zona onde esperava encontrar algum indício de falo, Dr. Gonçalves não o encontrou. Ao invés, um orifício de uma profundidade inconcebível ocupava toda a região ctónica de Dr. Julião. O orifício, porém, atraía a massa e energia envolventes, com um som oco e retraído a cada sucção:


Aquilo não era de todo uma menina, pensou Dr. Gonçalves, mas algo de fundamentalmente feminino habitava aquele corpo. Caiu em seus joelhos, e gatinhou receoso em direcção a Dr. Julião. Pequenas partículas incandescentes disparavam-se da fronteira do orifício, um termo impróprio na realidade, apercebeu-se Dr. Gonçalves, ao se aproximar, e reparar na sua clara esfericidade. A beleza daquele fenómeno era, todavia, indiscutível. Dr. Gonçalves não resistia em aproximar-se cada vez mais. "Dr. Julião...eu...eu não sei o que dizer..."

"Não diga nada Dr. Gonçalves. Apenas ouça..."

Dr. Gonçalves seduzira-se, e lançou os dedos da mão direita à zona ctónica de Dr. Julião. Assim que juntos à fronteira daquele fenómeno, foram imediatamente sugados, e por mais força que Dr. Gonçalves fizesse, não os conseguia retirar. "Dr. Julião! Os meus dedos! A minha mão! Devolva-ma, por favor!"

"Dr. Gonçalves, acalme-se, e aceite o convite que lhe faço. Refugie-se no meu ventre. Não se arrependerá. Aliás, deixe-me confortá-lo, e permitir que tome a decisão acertada, com ainda mais certezas." Despiu o blazer, o colete, tirou o laço, e por fim desabotoou a camisa a começar por baixo, até meio, expondo o corpo marcado a rugas e pêlos esbranquiçados. Colocou as pontas dos dedos na boca do estômago, e abriu a sua pele. Dr. Gonçalves viu oásis e paraísos em variadas dimensões, êxtase em forma líquida chover no interior de Dr. Julião, e pequenas criaturas, animais antropomórficos, que regurgitavam amores virginais, fábulas de campo, e alegrias do povo. Pareciam pequenos bonobos que se masturbavam uns aos outros, e fornicavam sem contraceptivo em frente de mágoas em espelho, em constante mutação. Olharam Dr. Gonçalves de alto a baixo, que os via como desenhos animados, e apaparicaram-no com elogios e poemas, implorando que os visitasse para todo o sempre.

"Mas...e a minha mulher, Dr. Julião? E a Fábia? Amo-as tanto! Não as posso deixar!"

"Não se preocupe com ditas questões, Dr. Gonçalves. Perante a informação que lhe permiti, tome uma decisão."

A sua esposa bateu à porta do escritório, indagando-se se poderia importunar Dr. Gonçalves. Procurava explicar-lhe uma situação chatíssima que acontecera ao chão da sala de estar (o Dr. Ramalho, que era psicólogo especialista em psicologia infantil, trouxe para o evento o seu mais novo, e não foi capaz de o impedir de urinar em cima de um antiquíssimo tapete sírio). Ouviu a voz de Dr. Julião permitindo a sua entrada.

"Oh, Dr. Julião, como está? Diga-me, sabe do meu esposo? Pareceu-me vê-lo a sair consigo, e supus que viesse para o escritório, mas pelos vistos enganei-me. Sabe dizer-me para onde foi? Precisava de falar com ele."

"Minha querida Dona Gonçalves, o Dr. Gonçalves esteve aqui comigo, de facto, e saiu à segundos, estranho não se terem cruzado. No entanto, ele pediu-me que trocasse uma palavrinha consigo. Enquanto não regressa."

"Oh, com certeza Dr. Julião. Por favor, diga-me."

"Preciso, no entanto, que me vá alcançar Fábia, para que compareça."

"Fábia?"

"Sim, a estudante de doutoramento, supervisionada por seu rico esposo."

"Sim, sim. Sei quem é Fábia. Uma bela senhorita, muito simpática. Só não compreendo...não compreendo o porquê? Qual a necessidade de ambas ouvirmos o que o Dr. Julião tem a dizer, se me permite."

"Uma razão muito simples, na verdade. Seria somente para discutir umas ideias para projectos que eu e Dr. Gonçalves discutíamos antes de aparecer. Pediu-me que adiantasse a conversa, caso aparecesse antes de ele chegar, por motivos de...celeridade. No entanto, seria melhor eu ficar aqui à sua espera, em vez de ir chamar Fábia, para que não pense que o abandonei. Por esta razão, poderia buscá-la por mim?"

"Ah, muito bem. Que bom! Com certeza, volto já!"

Regressou com Fábia a seu lado, que mascava pastilha e brincava com o piercing do seu umbigo descoberto. O seu olhar era distante. O cabelo ruivo pelos ombros saltava com cada passo, e quando parava, as suas ancas repousavam quer à esquerda ou à direita, acentuando a sua cintura. "Por favor, fechem a porta..." pediu Dr. Julião. Concordaram em fazê-lo. Espantaram-se de seguida com o doutor, que tinha as calças pelos tornozelos uma vez mais.

Explanado na Esplanada

Explanado na Esplanada

A realidade honestifica-se quando o observador medita sobre esta, sentado numa esplanada, a escrever. Rogo que o meu café sirva de catalisador.